Entrevista com Mestre Jadir, presidente da AJTKD

Conheça a inspiradora história de Mestre Jadir, que teve a vida transformada pelo Taekwondo e possibilitou o acesso à milhares de jovens ao esporte.

A história de Jadir Fialho Figueira se confunde com a história do Taekwondo no Brasil e envolve a luta pela melhoria das condições de crianças e jovens em situação de vulnerabilidade social. Além de mais de duas décadas de dedicação à Associação Jadir de Taekwondo, Mestre Jadir trouxe contribuições significativas como diretor técnico da Federação de Taekwondo do Estado do Rio de Janeiro e coordenador técnico da Confederação Brasileira de Taekwondo. Jadir foi responsável pela criação de vários projetos, tanto a nível local como nacional.

Nascido na década de 60 em Madureira, subúrbio do Rio de Janeiro e berço do samba carioca, Jadir era o irmão do meio de uma família que lutava para dar o melhor tratamento ao filho. Apesar de tantas conquistas na vida adulta, a infância de Mestre Jadir foi marcada por muitas idas a hospitais em função de sua saúde debilitada. Em 1975, um médico mudou o destino daquele jovem para sempre, indicando que ele deveria praticar algum esporte para auxiliar em seu tratamento. Uma bota ortopédica foi necessária para a locomoção com maior facilidade, já que o seu calcanhar não alcançava o chão, e o pai operário comprou a melhor que pôde pagar. Ele queria que o filho fosse jogador de futebol e um dia Jadir acordou com uma camisa de futebol, uma chuteira e um short para fazer um teste em uma escolinha.

“Após conversar com um senhor que tinha uma escolinha de futebol, meu pai disse que ia me levar lá. Ali ficou evidenciado que eu não me identificava com o futebol”, lembra Jadir.

A família buscava incessantemente a cura do filho. A prima de Jadir fazia parte de um projeto social em Campinho, bairro na Zona Norte do Rio de Janeiro. Ela lutava Judô e queria levar o menino para as aulas de Taekwondo que também eram oferecidas no projeto.

“Eu era um menino muito doente, mas eu era apaixonado por luta, porque naquela época sofríamos uma influência muito grande dos filmes do Bruce Lee, da série do David Carradine, do Kung Fu...”

Madureira nos anos 60 (foto: Biblioteca do IBGE)

A primeira aula de Taekwondo

A prima de Jadir acabou convencendo-o a fazer uma aula experimental.

“Quando cheguei, eu vi um homem com quase a idade do meu pai, que virou pra mim e disse ‘você vai tirar os sapatos, você não pode pisar aqui dentro de calçado e a primeira coisa que você tem que aprender são as regras que temos aqui dentro’. Como meu pai havia conversado com ele antes, eu achei que estava tendo uma atenção especial por isso, mas depois eu percebi que essa atenção era para todos que ali chegavam”.

As aulas eram ministradas por Carlos de Deus, um dos pioneiros do trabalho social de Taekwondo no Estado do Rio de Janeiro. A partir daquele momento, Jadir foi imerso por um ritual de disciplina e respeito que o impactou de uma forma permanente.

“Eu fui apresentado para um grupo de alunos. O Carlos de Deus me disse: 'Cada um desses vai contribuir para seu sucesso e você vai contribuir para o sucesso deles também’. Ele já começou a colocar na minha cabeça a importância do trabalho em equipe. Ele sentava tanto no começo da aula como no final para conversar com a gente. Ele conversava com a gente a respeito dos princípios e valores do Taekwondo e criava metas para cada um e, ao mesmo tempo, fazia um trabalho motivacional muito forte.”

Muitos dos jovens que participavam daquele projeto social eram desprovidos financeiramente. Os jovens que se graduavam passavam a ser monitores dos menores. Todo aquele trabalho foi essencial para a melhora da saúde de Mestre Jadir. Ele lembra que ao chegar no projeto pela primeira vez, viu meninos chutando uma bola elevada por uma corda e ficou impressionado:

“Eu não sabia nem correr direito, imagina chutar aquilo ali. Mas o Carlos de Deus me disse ‘Uma hora você vai conseguir’. Em menos de um ano eu já estava saltando e chutando aquela bola. Minha evolução acontecia de forma gradativa e minha saúde foi melhorando.”

O Taekwondo passou a ser a paixão do menino Jadir e a prática não se limitou aos treinamentos, estendeu-se também à sua vida fora da academia. Depois de um tempo no projeto, um médico o consultou e disse que ele não precisaria mais usar a bota ortopédica. O menino passou a ter uma boa saúde e se transformou em um jovem disciplinado e cheio de sonhos. “Aquela experiência que eu tive ali mudou completamente minha forma de ver o mundo. Aquilo impactou muito a minha vida. Algumas pessoas marcam nossas vidas e deixam mensagens que nunca se apagam. Eu posso dizer que o Carlos de Deus foi uma pessoa que me trouxe um aprendizado que levo até hoje. Eu fiquei lá durante um tempo, foi o início da minha história. Se não fosse o projeto, eu não teria conhecido o Taekwondo.”

Jadir e Carlos de Deus, quatro décadas depois (2014)

O início da carreira de treinador

Na década de 80, Jadir começou a treinar em uma academia em Botafogo com o Grão-Mestre Yong Min Kim, onde, depois de anos de dedicação, se graduou faixa preta. Jadir passou, então, a dar aulas de Taekwondo no Jacarepaguá Tênis Clube, Zona Oeste do Rio de Janeiro, onde os alunos pagavam mensalidade ao clube. Ele notou que alguns meninos de comunidades vizinhas assistiam às suas aulas pela janela até que algum segurança os expulsassem do local. Aquilo foi chamando a atenção do treinador, até que, ao abordá-los, Jadir descobriu que eles gostariam de participar das aulas mas não tinham condições de pagar.

“Eu fiz uma proposta para o presidente do clube e o diretor de esportes da época para que a gente conseguisse ter bolsas para esses meninos e que eles pudessem participar das atividades. Foi feita uma reunião com a diretoria do clube da época. Conseguimos inserir esses meninos e possibilitar que eles tivessem acesso gratuito à prática do Taekwondo. Com o passar do tempo, muitos foram campeões.”

Foram 14 anos de dedicação no Jacarepaguá Tênis Clube. As equipes evoluíram e bons resultados foram alcançados, até que eles se tornaram uma potência na região. 

Jadir e Yong Min Kim no Jacarepaguá Tênis Clube, anos 80

A criação da AJTKD

Com o passar dos anos, havia uma preocupação com as drogas e violência que os jovens do projeto estavam expostos. Mestre Jadir almejava ampliar esse trabalho, mas sabia que não conseguiria sozinho. Um pai de um aluno, Sr. Valdir Gomes, o ajudou a estruturar o projeto e outros pais se interessaram, além de alguns ex-atletas e educadores. Em 2000, esse grupo auxiliou o Mestre Jadir a fundar a Associação Jadir de Taekwondo (AJTKD).

A AJTKD foi fundada em Madureira, bairro em que Mestre Jadir nasceu e cresceu, com o objetivo de ampliar a capacidade de atendimento. O projeto Taekwondo comunitário facilitou o acesso de crianças e jovens ao esporte e o trabalho foi além. Foi criado um suporte psicológico para as famílias de alunos e um monitoramento do desempenho estudantil para apoio pedagógico.

“Percebemos que havia a necessidade de um maior envolvimento dos pais, então começamos a desenvolver atividades voltadas para as famílias. Começamos a perceber também que, com a massificação, começaram a aparecer alguns talentos, então iniciamos um trabalho voltado para o treinamento de competição. Começamos a detectar e selecionar alguns meninos para esse trabalho. 

"Muitos nos relataram ter dificuldade para se alimentar. Alguns só tinham uma refeição por dia. Desenvolvemos um programa de cesta básica para atender essas crianças. Em um ano, chegamos a arrecadar duas toneladas de alimentos para essas famílias.”

O Taekwondo estreou oficialmente como modalidade olímpica nos Jogos de Sydney 2000, mesmo ano da fundação da AJTKD, fazendo com que a procura pela prática do esporte aumentasse. Inicialmente, o objetivo era atender os jovens da comunidade e do entorno, mas a associação começou a receber alunos de várias localidades do Rio de Janeiro. Com o passar do tempo, houve um aumento de voluntários, muitos deles ex-alunos do Mestre Jadir.

“Hoje muitos meninos que começaram com a gente no projeto, cresceram, se formaram em áreas específicas e depois retornaram para serem voluntários. De alguma forma o projeto impactou a vida desses jovens a ponto deles quererem retornar para ajudar outros jovens a terem a oportunidade que um dia eles tiveram. Isso me motiva”.

Em 2004, o trabalho da AJTKD foi ganhando ainda mais visibilidade. Foi iniciado um projeto de prevenção primária às drogas, que obteve uma parceria institucional com a ONU; também no mesmo ano, a equipe recebeu um certificado de reconhecimento pelos relevantes serviços prestados ao Taekwondo, emitido pela Confederação Brasileira de Taekwondo (CBTKD).

Primeiros anos da AJTKD na quadra da Tradição, escola de samba localizada em Madureira

Na equipe nacional

Em 2009, a pedido do Grão-Mestre Yong Min Kim, Mestre Paulo Rocha e Grão-Mestre Jadir desenvolveram o Projeto Taekwondo nas Escolas. Assim, o Taekwondo foi inserido no Programa Mais Educação, do Governo Federal, com a participação de mais de mil escolas em todo o Brasil.

Em 2011, Mestre Jadir foi convidado pela CBTKD para assumir a coordenação técnica nacional. Paulo Eduardo Rocha, membro da AJTKD desde a fundação, e Danilo Malafaia, diretor administrativo da AJTKD, assumiram a gestão técnica da equipe junto com Jadir. Além de toda a bagagem da associação, Jadir coordenou o departamento técnico da Federação Carioca em anos anteriores, o que rendeu bons resultados para o Taekwondo no Estado do Rio de Janeiro.

“Quando nós assumimos a direção técnica do Taekwondo brasileiro, já tínhamos bastante experiência com formação de atletas. Já tive diversos competidores em minha equipe, além de ter atuado várias vezes como técnico da seleção carioca, inclusive com a conquista do campeonato brasileiro em 2010, então a gente já conhecia as dificuldades enfrentadas por atletas e treinadores. Fizemos um diagnóstico do Taekwondo nacional. 

"Nossa primeira ação foi a criação do sistema nacional de ranking e de um novo sistema de classificação para a seleção brasileira, para que todos pudessem competir em situação de igualdade. As competições eram muito centralizadas na região sul e sudeste. Passamos a investir também nas regiões norte e nordeste, homologamos e realizamos competições em todo o Brasil.”

O sistema nacional de ranking foi tão expressivo que o número de atletas competindo passou de 400 a 4 mil em apenas três anos. Ainda em 2011, a categoria Sub-21 foi implementada com o objetivo de criar uma transição entre as categorias juvenil e sênior, facilitando a ascensão do competidor de acordo com a idade. Além disso, a categoria Cadete foi introduzida no Brasil.

Houve também um trabalho intenso na capacitação de árbitros e técnicos. Com o objetivo de aumentar a participação brasileira na arbitragem internacional, em 2013 foi trazido para o país o curso de formação e reciclagem de árbitros internacionais da Federação Mundial de Taekwondo. O curso contou com a participação de árbitros de diversos países, formando um expressivo grupo de árbitros brasileiros, o que contribuiu para a evolução da modalidade e uma maior representatividade no cenário internacional.

Com o objetivo de promover uma reciclagem e capacitação de treinadores, também em 2013, Jadir e Paulo Rocha apresentaram uma proposta de capacitação a nível nacional, com a vinda de técnicos do exterior para o Brasil. No mesmo ano, o Brasil sediou o curso internacional de instrutores da Kukkiwon, a academia mundial de Taekwondo. Além disso, o esporte passou a fazer parte da Academia Brasileira de Treinadores (ABT), um programa do Instituto Olímpico Brasileiro (IOB).

Em 2014 foi iniciado um projeto de preparação da equipe brasileira visando o Campeonato Mundial Juvenil de Taekwondo e os Jogos Olímpicos da Juventude. Através desse projeto, os atletas da categoria juvenil foram enviados para um camping de treinamento na Coréia do Sul e na China. O desfecho de todo esse projeto foi a conquista de um ouro no Campeonato Mundial Juvenil e, posteriormente, a conquista inédita do ouro nos Jogos Olímpicos da Juventude. Em toda a gestão da equipe de Jadir na Confederação, de 2011 a 2015, o Brasil conquistou mais de 160 medalhas em eventos internacionais.

“Quando a gente entrou, o Mestre Jadir falou assim: 'As pessoas têm que ter oportunidades iguais’. Desta forma, procuramos criar critérios justos e transparentes”, lembra Paulo Rocha.

“Nossa ideia era criar um projeto a nível nacional que pudesse beneficiar a todos igualmente, independente de sua região”,comenta Jadir.

Trabalho contínuo e inspiração

Em 2015, Mestre Jadir decidiu encerrar seu ciclo na Confederação e dedicar-se em tempo integral à Associação Jadir de Taekwondo. Foi um momento de reestruturação, com novos projetos, novos alunos, e novos voluntários atuando no Brasil e no exterior.

Em 2022, a AJTKD realizou, pela primeira vez, um evento nas Nações Unidas, intitulado Inclusão Social através do Esporte. O evento foi um sucesso e contou com a apresentação de diversos membros e voluntários da associação. Mestre Jadir falou sobre sua experiência de vida, como o Taekwondo o ajudou a superar momentos difíceis e como essa arte marcial o inspirou a ajudar o próximo. Ele explicou que o esporte é essencial quando se trata de seu trabalho com crianças de áreas carentes do Brasil.

Este mês, a associação celebra 22 anos com um grande desafio: ampliar o número de crianças e jovens atendidos. 

Mestre Jadir fala com orgulho de seu legado: “Nós conquistamos muitos prêmios nacionais e internacionais, mas a maior conquista foi ter possibilitado que mais de sete mil crianças e adolescentes pudessem ter acesso ao esporte, a mesma oportunidade que nós tivemos.”

Projeto Taekwondo Comunitário, 2015 (foto por @rafaeldavidphotographybr)

E assim, aquele menino que andava de botas ortopédicas e enfrentou grandes adversidades descobriu o Taekwondo, esporte que transformou sua vida, e teve como missão transformar a vida de tantos outros jovens através do esporte.

“O Taekwondo faz parte da história da minha vida. Fico muito feliz em ter contribuído para transformar a vida de muitas crianças e jovens por meio do esporte. Acredito que uma simples oportunidade pode fazer a diferença na vida de uma pessoa”.

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